Tendo apresentado a Revelação e a sua Transmissão, o Concílio dedica-se à Sagrada Escritura. O primeiro tema é a inspiração da Escritura. A Dei Verbum (DV) pretende manter-se dentro da tradição da Igreja e, de fato, irá retomar muitas afirmações do Magistério:
“As coisas reveladas por Deus, contidas e manifestadas na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo. Com efeito, a santa Mãe Igreja, segundo a fé apostólica, considera como santos e canônicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, porque, escritos por inspiração do Espírito Santo (cfr. Jo 20,31; 2 Tm 3,16; 2 Pd 1, 19-21; 3, 15-16), têm Deus por autor, e como tais foram confiados à própria Igreja.” (DV 11)
Inspiração é, para a DV, uma forma específica de falar sobre o caráter sagrado singular e único das Escrituras. A palavra theópneustos, ou seja, “inspirada por Deus” = theo – Deus; pneustos, de pneo – soprar, respirar; quase como se Deus tivesse “soprado” as Escrituras, é rara; nunca aparece na tradução grega dos LXX e encontra-se uma única vez no Novo Testamento: “Toda Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, para refutar, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, preparado para toda boa obra.” (2Tm 3,16-17). Foi traduzida para o latim da Vulgata com inspirare = “inspirar”. Outros textos usam palavras que, talvez, para nós sejam até mais compreensíveis, como “impelidos”:
“Por isso, acreditamos com mais firmeza na palavra dos profetas. E vocês fazem bem considerando-a como luz que brilha em lugar escuro, até que raie o dia quando a estrela da manhã brilhar em seus corações. Antes de mais nada, saibam disto: nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação particular, pois a profecia jamais veio por vontade humana. Pelo contrário, impelidos pelo Espírito Santo, os homens falaram como porta-vozes de Deus.” (2Pd 1,19-21)
O que se pretendeu com a afirmação da inspiração da Escritura foi que ela brota, de alguma forma, do próprio Deus que nela se revela de um modo particular e, por isso, pode ser dita “sagrada”, “palavra de Deus”. Tem a Deus, de certo modo, por seu autor. Em outras palavras, foram escritas sob direção especial do Espírito Santo, cujo efeito é tornar a palavra humana a palavra de Deus.
Mas em que sentido Deus está na origem da Escritura? ou, em outras palavras, é seu autor? Esta questão é importante porque nos introduzirá em problemas ainda não bem resolvidos: a questão da verdade ou inerrância bíblica e a necessidade de interpretação. Podemos agrupar as principais respostas em três vertentes:
A inspiração como um verdadeiro “ditado” (dictare). Encontramos afirmações nesse sentido, por exemplo, em Agostinho e Jerônimo; nas controvérsias do séc. XVI (em católicos e reformadores); no Vaticano I. Para quem defende essa interpretação, o escritor humano foi apenas um instrumento para Deus. Atenágoras, por exemplo, afirma que os profetas do Antigo Testamento eram como flauta tocada pelo tocador divino e Gregório Magno, como a caneta na mão do autor. Esta interpretação reduz a inspiração a algo mecânico, anulando ao máximo o contributo humano.
O problema é que a Bíblia está cheia de inconsistências e erros de natureza histórica, geográfica e científica; e o mais grave: de natureza moral e religiosa (1Sm 15,3: Samuel unge Saul e transmite a ordem em nome de Javé - Agora, vá, ataque, e condene ao extermínio tudo o que pertence a Amalec. Não tenha piedade: mate homens e mulheres, crianças e recém-nascidos, bois e ovelhas, camelos e jumentos); as posturas fundamentalistas terão que fazer muita “ginástica” para fugir dessas objeções.
Outros afirmam simplesmente que Deus é o “autor”. Está presente desde os santos padres; também reformadores como Calvino a usam. Deus é o autor da Escritura, mas sem atribuir a Ele a autoria literária. Autor aqui é entendido em sentido amplo, ou seja, de gerador ou fonte.
Por fim, a terceira postura é marcada por um termo técnico: “condescendência” (synkatábasis; attemperatio = “acomodação”). É proveniente de João Crisóstomo (aproximadamente: 347-407; In Gen. 3,8 – Hom. 17,1). É a posição mais duradoura e está presente na DV, que a retoma quase literalmente como aparece na Divino Afflante:
“Portanto, na Sagrada Escritura, salvas sempre a verdade e a santidade de Deus, manifesta-se a admirável «condescendência» da eterna sabedoria, «para conhecermos a inefável benignidade de Deus e com quanta acomodação Ele falou, tomando providência e cuidado da nossa natureza». As palavras de Deus com efeito, expressas por línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes à linguagem humana, como outrora o Verbo do eterno Pai se assemelhou aos homens tomando a carne da fraqueza humana.” (DV 13)
Assim como o Verbo se fez carne assumindo toda a fraqueza dela decorrente, menos o pecado, assim a Palavra de Deus se fez palavra humana, tornando-se semelhante à linguagem humana. Deus quis colocar-se ao alcance dos homens. Podemos ler agora a segunda parte do parágrafo:
“Na redação dos livros sagrados Deus escolheu homens, dos quais se serviu fazendo-os usar suas próprias faculdades e capacidades, a fim de que, agindo Ele próprio neles e por eles, escrevessem, como verdadeiros autores, tudo e só aquilo que Ele próprio quisesse.” (DV 11)
Quanto à verdade da Escritura, os esquemas conciliares vão abandonando a expressão “inerrância” e assumindo “verdade”, se refere àquilo que é necessário para a nossa salvação:
“E assim, como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Letras.” (DV 11)
O contexto da citação de 2Tm deixa isso claro:
“Quanto a você, permaneça firme naquilo que aprendeu e aceitou como certo; você sabe de quem o aprendeu. Desde a infância você conhece as Sagradas Escrituras; elas têm o poder de lhe comunicar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Jesus Cristo.” (2Tm 3,14-15)
Não se deve querer extrair da Escritura, como se fez no passado, conhecimentos científicos, cosmológicos, geográficos, botânicos etc. As questões históricas são mais complexas, já que a revelação divina está particularmente ligada a fatos históricos, não obstante, é bom lembrar que a história como ciência é uma conquista dos últimos séculos. No mundo antigo, as narrativas históricas procediam de acordo com a concepção do tempo e da cultura. Todos esses campos do saber, na Bíblia, estão sempre condicionados pelos conhecimentos da época. A condescendência divina significa que mesmo na imperfeição do saber humano, sempre condicionado e limitado, a Palavra de Deus nos conduz com segurança à salvação.
Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo