Atendendo ao convite de celebrarmos o Ano Jubilar tendo presente os grandes documentos do Concílio Vaticano II, estamos lendo a Constituição Dogmática Dei Verbum (DV), Sobre a Revelação Divina. Em seu primeiro capítulo, apresenta a revelação em sua realização mediante a história e a encarnação.
Deus se revela ao ser humano. É livre iniciativa de Deus, por sua bondade e sabedoria. Portanto, graça. “... Os homens, por intermédio de Cristo, Verbo feito carne, e no Espírito Santo, tem acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina” (cfr. Ef 2,18; 2 Pd 1,4) - (DV 2). O texto retoma o Vaticano I, mas dá uma formulação personalista: a revelação é um encontro de pessoas – a divina e a humana. O “objeto” da revelação é o próprio Deus, que “...na riqueza do seu amor fala aos homens como a amigos (cfr. Ex 33, 11; Jo 15,14-15) e convive com eles (cfr. Bar 3,38), para os convidar e admitir à comunhão com Ele” (DV 2).
A revelação é, portanto, mais que a transmissão de ideias, informações, normas, doutrinas... é Deus que vem ao encontro do ser humano amorosamente e o quer em comunhão consigo (exatamente o que chamamos de salvação). A DV fala em “ações e palavras”. As pessoas podem se comunicar de muitos modos: gestos, ações, palavras, imagens, gestos acompanhados de palavras, sinais articulados ou sinais gráficos. É importante sempre ter presente que “palavra” é mais amplo que “escrita”.
“Este plano de revelação realiza-se por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido” (DV 2).
É a primeira vez na história que o Magistério da Igreja descreve assim a revelação, em seu exercício concreto, pondo em evidência o caráter histórico e sacramental da revelação, que alcança seu ponto alto e decisivo em Cristo: “a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, se nos manifesta, por esta revelação, em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação” (DV 2).
Deus se revela de duas maneiras que costumam ser indicadas como: revelação natural e “sobrenatural” ou positiva. O próprio ato criador e mantenedor é já revelador do Criador. O ser humano, através da criação, pode chegar ao Criador. Significa afirmar que o Criador e seu desejo de comunhão com a criatura (salvação) é dirigido a todas as pessoas.
Isto é importante, pois permite a Deus salvar para além daqueles que receberam a “revelação sobrenatural” (cfr. Rom 2,6-7). Esta revelação “natural” está na base do sentimento religioso que sempre envolveu e envolve os seres humanos: “Deus, criando e conservando todas as coisas pelo Verbo (cfr. Jo 1,3), oferece aos homens um testemunho perene de Si mesmo na criação (cfr. Rom 1, 19-20)” (DV 3). Mas para além desta revelação natural, Deus quis travar com a humanidade um diálogo amoroso, ou seja, se manifestou numa revelação pessoal e histórica:
“decidindo abrir o caminho da salvação sobrenatural, manifestou-se a Si mesmo, desde o princípio, aos nossos primeiros pais. Depois da sua queda, com a promessa de redenção, deu-lhes a esperança da salvação (cfr. Gn. 3,15), e cuidou continuamente do gênero humano, para dar a vida eterna a todos aqueles que, perseverando na prática das boas obras, procuram a salvação (cfr. Rom. 2, 6-7)” (DV 3).
O Concílio, no entanto, não se deteve para explicar as relações que existem entre estes dois modos de revelação. Em Jesus Cristo, esta “revelação sobrenatural” (histórica e pessoal) alcança sua plenitude:
“Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado «como homem para os homens», «fala, portanto, as palavras de Deus» (Jo 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai lhe mandou realizar (cfr. Jo 5,36; 17,4). Eis por que Ele, ao qual quem vê vê o Pai (cfr. Jo. 14,9), pela plena presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o envio do Espírito de verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a revelação, a saber, que Deus está conosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna.” (DV 4)
Esta revelação que tem Cristo por Mediador e plenitude é definitiva e jamais passará, durando até a consumação final: “já não há que esperar nenhuma outra revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (cfr. 1 Tim 6,14; Tit 2,13)” (DV 4; LG 25). A revelação pública tem em vista a salvação de toda a humanidade. O Concílio não se pronuncia quanto às revelações particulares, ou seja, aquelas que tem em vista a salvação das pessoas ou grupos que a recebem (por exemplo: revelações de Fátima ou de Medjugorje); o que foi entendido como aceitação de que sejam possíveis, mas não são impositivas nem universais e estão sujeitas ao crivo do magistério.
Enquanto a revelação natural está no nível da razão, a esta revelação sobrenatural de Deus o ser humano deve responder com a “obediência da fé” (Rom. 16,26). Também a resposta é pessoal, contando com a graça do Espírito Santo, ou seja, não é simplesmente fruto da atividade humana, como a resposta à revelação natural. É dom de Deus: “pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus oferecendo «a Deus revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade» e prestando voluntário assentimento à Sua revelação” (DV 5).
Assim como a revelação é dinâmica, se manifestou na história, mesmo tendo atingido sua plenitude em Jesus Cristo, também a resposta da fé é dinâmica, sujeita a um contínuo aperfeiçoamento: “Para que a compreensão da revelação seja sempre mais profunda, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa sem cessar a fé mediante os seus dons” (DV 5).
O capítulo I termina reafirmando o anteriormente proposto e realçando a sua finalidade: a salvação dos homens (sempre entendida como participação da vida em Deus; comunhão com Ele):
“Pela revelação divina quis Deus manifestar e comunicar-se a Si mesmo e os decretos eternos da Sua vontade a respeito da salvação dos homens, «para os fazer participar dos bens divinos, que superam absolutamente a capacidade da inteligência humana». O sagrado Concílio professa que Deus, princípio e fim de todas as coisas, se pode conhecer com certeza pela luz natural da razão a partir das criaturas» (cfr. Rom. 1,20); mas ensina também que deve atribuir-se à Sua revelação «poderem todos os homens conhecer com facilidade, firme certeza e sem mistura de erro aquilo que nas coisas divinas não é inacessível à razão humana, mesmo na presente condição do gênero humano»” (DV 6).
O Concílio confirma o poder da razão de chegar a conhecer a Deus que se revela; mas salienta que essa verdade pode ser mais facilmente conhecida por todos, sem dificuldade, com plena certeza e sem mescla de erro pela revelação. Mas insiste em que essa revelação diz respeito à “salvação dos homens”. Em outras palavras, “Deus não se revela nem revela alguma coisa para satisfazer a curiosidade do homem, mas para salvá-lo, para tirá-lo da morte do pecado e para levá-lo a participar dos bens divinos que superam tudo que o homem pode compreender” (R. LATOURELLE).
Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo