O JUBILEU DE 2025 E A DEI VERBUM

16 de Maio de 2025

"O JUBILEU DE 2025 E A DEI VERBUM"

Ao convocar todos os fiéis para o ano jubilar de 2025, o Papa Francisco recomendou: “Preparar-se para o Jubileu de 2025, retomando os textos fundamentais do Concílio Ecumênico Vaticano II, é um compromisso que, peço a todos, seja acolhido como momento de crescimento na fé.” Sobretudo as quatro constituições. As duas dogmáticas: Lumen Gentium, Sobre a Igreja; a Dei Verbum, Sobre a Revelação Divina. E as duas pastorais: Gaudium et Spes, Sobre a Igreja no Mundo de Hoje; e a Sacrosanctum Concilium, Sobre a Sagrada Liturgia. Os documentos da Igreja costumam ser nomeados pelas duas palavras com as quais iniciam no original, em latim.

Neste e nos próximos artigos, nosso interesse estará voltado para a Dei Verbum, ou seja, a Palavra de Deus. Seu subtítulo é: Sobre a Revelação Divina. Embora isso vá se esclarecendo ao longo do documento e o pretendemos analisar em detalhes, para ser mais compreensível, podemos simplificar afirmando que Deus se manifesta a nós, que usa de sua Palavra para revelar-se. É desse relacionamento com Deus, que tem origem em sua amorosa disposição de dar-se a conhecer a nós, que tratamos. Tem tudo a ver, portanto, com as Sagradas Escrituras, com sua origem e o uso que delas fazemos, embora a revelação seja mais ampla do que elas.  O documento Dei Verbum refere-se à revelação que Deus faz de Si Mesmo para o ser humano. Iniciaremos apresentando um pouco de sua história. 

A questão da revelação esteve no centro das discussões teológicas, sobretudo após o Concílio Vaticano I (1870). Mas ela vem de longe e foi agravada pelo surgimento da ciência moderna, marcada pelo método experimental, do qual podemos nos lembrar de Galileu Galilei (1564 - 1642) e os conflitos com o Santo Ofício, pelo que suas pesquisas mostravam em contradição com o que se pretendia concluir a partir de uma determinada leitura bíblica; e com o racionalismo, marcado pelo pensamento de René Descartes (1594 - 1650). Passou por uma crise severa interna à própria Igreja com o Modernismo, fato que ficou emblematizado na pessoa do padre teólogo Alfred Loisy (1857 - 1940), excomungado em 1908, entre outras coisas, pela aplicação que fazia dos métodos modernos de interpretação à leitura da Bíblia.  

A questão em torno da revelação, no entanto, ganhou também espaço de forma positiva no século XX com o Movimento Bíblico e o Ecumênico. Mesmo antes da abertura do Concílio, a revelação já era considerada um tema central. No interior desta ampla questão, o principal problema no desentendimento entre católicos e protestantes era a relação entre Escritura e Tradição. Internamente à Igreja, no século XX, tornava-se insustentável a reserva manifestada nos últimos séculos em que os fiéis tivessem acesso às Sagradas Escrituras.

Quando convocou o Concílio, o papa João XXIII constituiu equipes de trabalho chefiadas pelos membros da Cúria Romana para prepararem esquemas que seriam apresentados aos bispos e, com alguma modificação, possivelmente aprovados. O primeiro esquema a ser estudado e, de fato, rapidamente aprovado foi sobre a liturgia: Sacrosanctum Concilium. Este documento recolheu as principais reflexões sobre a liturgia no século XX e as mudanças já colocadas em curso, sobretudo pelo papa Pio XII. Mas foi o único dos 72 esquemas preparatórios aprovados. A maioria dos outros sequer entrou em discussão na aula conciliar.

O segundo a ser estudado foi o da revelação, com o título: Constituição dogmática sobre as fontes da revelação. Já antes do Concílio havia sinais de insatisfação com esse esquema, provocando um debate penoso e difícil, que dividiu a assembleia. Tinha uma perspectiva marcadamente apologética, dando grande peso ao conteúdo da Tradição frente à Escritura, pondo ênfase na inspiração verbal e na questão da historicidade dos relatos, com uma concepção estreita de inerrância bíblica. Calava-se sobre o próprio ato da revelação divina, que atinge seu ápice na pessoa de Jesus Cristo. Fazia uma leitura simplificada dos textos tridentinos e, seguindo a releitura do Vaticano I, propunha a doutrina das "duas fontes" da revelação (Tradição e Escritura), como doutrina praticamente dogmática (cap. 1), dando especial realce ao papel do magistério, que era a quem pertencia a autoridade de decidir sobre o sentido e a interpretação da Escritura, bem como o que pertence ou não à Tradição (n.6).

         Este esquema estava, portanto, distante daquelas condições colocadas para o Concílio pelo papa João XXIII, sobretudo sua preocupação ecumênica (as outras eram: ser Pastoral, de Diálogo e de Aggiornamento, ou seja, atualização). Este esquema ou texto provisório vazou e gerou muita controvérsia em Roma, dentro e fora da aula conciliar. Foi o momento de maior crise no Concílio.

Colocado em votação no dia 20 de novembro de 1962, a ampla maioria o rejeitou como ponto de partida para a discussão, mas sem atingir os 2/3 exigidos pelo regulamento do Concílio. Faltaram 100 votos. O texto, portanto, permaneceria como base para as discussões. Mas vendo a enorme oposição ao texto, João XXIII decidiu retira-lo e nomeou uma Comissão mista, presidida por dois cardeais, Ottaviani e Bea, para rever o texto. Esta comissão era composta por membros do Santo Ofício e pelo recém-criado Secretariado Para a Unidade, encarregado de garantir a abertura ecumênica, nos textos em estudo. Esta comissão mista não teve vida fácil. Ao longo dos três anos de Concílio foram elaboradas ao menos oito redações, chegando em alguns momentos a se pensar em abandonar sua tratativa por falta de consenso, até que se alcançasse o texto final que seria aprovado. A questão da revelação perpassou, portanto, todo o Concílio, sendo o último a ser aprovado. Na congregação solene de 18 de novembro de 1965, o texto foi votado, alcançando 2.344 sim e apenas 6 não.  

A introdução da Dei Verbum, ainda que sóbria, é grandiosa. Poderia ser a introdução de toda a obra conciliar. Ela apresenta o tema que será desenvolvido, a revelação divina e sua transmissão, visando a salvação do mundo inteiro:

“O Sacrossanto Concílio, ouvindo com reverência e proclamando com confiança a Palavra de Deus, faz suas as palavras de São João ao dizer. ‘A vida eterna que a vós anunciamos, que estava junto do Pai e que se tornou visível para nós - isso que vimos e ouvimos, nós vos anunciamos, para que estejais em comunhão conosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo’ (1Jo 1,2-3). Por isto, seguindo os passos dos Concílios de Trento e Vaticano I, se propõe a expor a genuína doutrina sobre a revelação divina e a sua transmissão, para que o mundo todo, ao ouvir o anúncio da salvação, creia, crendo espere e esperando ame.” (DV 1)

O título definitivo mostra uma mudança de enfoque em relação ao primeiro esquema rejeitado: é mais amplo e preocupado com o essencial, isto é, a Revelação em si mesma e sua transmissão. Esta Palavra de Deus dirigida à humanidade de uma vez por todas (teve seu ápice em Jesus Cristo) se perpetua através da Tradição e da Escritura. Por sua vez, a finalidade é descrita em sua preocupação pastoral com uma afirmação de Agostinho: “que pelo anúncio da salvação, o mundo inteiro, ouvindo creia, crendo espere, esperando ame”. (cit. Agostinho, Cathechizandis rudibus IV, 8)

         A DV está estruturada em 6 capítulos: 1. A Revelação em si mesma, ou seja, do que se trata; 2. A Transmissão da Revelação: ou seja, a Tradição; 3. A questão da Inspiração, ou seja, em que sentido é Palavra de Deus e a sua interpretação; 4. Antigo Testamento; 5. Novo Testamento; 6. Pastoral: Sagrada Escritura na vida da Igreja.


Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo