O Concílio Vaticano II, após ter apresentado o entendimento da Igreja sobre a Revelação, Inspiração, Transmissão e a necessidade de Interpretação, dá preciosas indicações específicas à cerca das Sagradas Escrituras. O capítulo IV da Constituição Dogmática Dei Verbum (DV) é dedicado ao Antigo Testamento (AT). O descreve em seu papel pedagógico na preparação da vinda de Cristo; reafirma seu valor e sua intrínseca relação com o Novo Testamento (NT; continuamos utilizando a terminologia tradicional, embora muitos prefiram indicá-los como Primeiro e Segundo Testamentos, já que “Antigo” ou “Velho” poderia indicar uma desvalorização indevida).
Duas atitudes, muito presentes tanto ao longo da história do cristianismo quanto atualmente entre as igrejas cristãs, são combatidas: a desconsideração do AT como palavra revelada e, portanto, de Deus e a postura oposta, sua excessiva valorização, como acontece atualmente com muitas igrejas cristãs não-católicas no Brasil, não levando suficientemente em conta a novidade do Evangelho de Jesus Cristo. Em todo caso, a preocupação é sempre com a salvação da humanidade:
“Deus amantíssimo, desejando e preparando com solicitude a salvação de todo o gênero humano, escolheu por especial providência um povo a quem confiar as suas promessas. (...) revelou-se ao Povo escolhido como único Deus verdadeiro e vivo, em palavras e obras (...) A “economia” da salvação de antemão anunciada, narrada e explicada pelos autores sagrados, encontra-se nos livros do Antigo Testamento como verdadeira palavra de Deus. Por isso, estes livros divinamente inspirados conservam um valor perene” (DV 14).
Estes escritos que compõem o AT têm sentido enquanto são preparatórios para a vinda de Cristo. Neste sentido, são entendidos conforme a “pedagogia divina”: “Tais livros, apesar de conterem também coisas imperfeitas e transitórias, revelam, contudo, a verdadeira pedagogia divina” (DV 15). Com “coisas imperfeitas e transitórias”, o Concílio já nos alerta que o AT possui textos que foram superados; tratavam-se de coisas passageiras; que tiveram sentido e importância em um determinado contexto e época histórica, mas que podem não servir mais. Como exemplo basta uma rápida leitura do capítulo 5 do Evangelho de Mateus.
O AT, no entanto, está intrinsecamente ligado ao NT. Entre ambos existe um processo de esclarecimento recíproco. O Concílio ilustra esta afirmação com um célebre pensamento de Santo Agostinho: “O Novo está escondido no Velho; o Velho se patenteia no Novo” (Questões sobre o Heptatêuco 2,73).
Chegamos assim ao capítulo V da DV: o Novo Testamento. Este capítulo, em sua versão final, representa uma longa evolução, superando pouco a pouco o caráter polêmico e apologético de esquemas anteriormente debatidos pelo Concílio. Retoma o que foi exposto nos capítulos anteriores e o relaciona com a formação do NT.
“A palavra de Deus, que é a força de Deus para a salvação de todos os crentes (cfr. Rom. 1,16), apresenta-se e manifesta o seu poder de modo eminente nos escritos do Novo Testamento. Com efeito, quando chegou a plenitude dos tempos (cfr. Gál. 4,4), o Verbo fez-se carne e habitou entre nós cheio de graça e verdade (cfr. Jo. 1,14). Cristo estabeleceu o reino de Deus na terra, manifestou com obras e palavras o Pai e a Si mesmo, e levou a cabo a Sua obra com a Sua morte, ressurreição, e gloriosa ascensão, e com o envio do Espírito Santo.” (DV 17).
Jesus é a plenitude da revelação divina; comunhão salvífica de Deus com a humanidade. Os Evangelhos que são a principal testemunha da vida e doutrina do Verbo encarnado gozam de primazia entre toda a Escritura, mesmo em relação ao NT. O Concílio insiste na origem apostólica dos Evangelhos e em sua historicidade, compreendida como transmissão do que Jesus viveu, ensinou e fez entre os homens para a sua salvação.
“Os autores sagrados, porém, escreveram os quatro Evangelhos, escolhendo algumas coisas entre as muitas transmitidas por palavra ou por escrito, sintetizando umas, desenvolvendo outras, segundo o estado das igrejas, conservando, finalmente, o carácter de pregação, mas sempre de maneira a comunicar-nos coisas autênticas e verdadeiras acerca de Jesus. Com efeito, quer relatassem aquilo de que se lembravam e recordavam, quer se baseassem no testemunho daqueles ‘que desde o princípio foram testemunhas oculares e ministros da palavra’, fizeram-no sempre com intenção de que conheçamos a ‘verdade’ das coisas a respeito das quais fomos instruídos (cfr. Lc. 1, 2-4)” (DV 19).
O que foi expresso orienta nossa leitura e interpretação da Escritura: devemos ler e interpretar com os “olhos” de Jesus, ou seja, nossa fonte privilegiada são os Evangelhos; em seguida, os ecos dos Evangelhos no restante do NT e, por fim, o AT como sua preparação. Podemos esquematizar assim: Ev ? NT ? AT.
A Escritura, no entanto, não deve ocupar apenas um espaço intelectual na vida da Igreja (apenas transmitindo normas, por exemplo). Ela é uma Palavra viva e vivificante. Por isso, o Concílio encerra a DV com um capítulo de índole pastoral: A Sagrada Escritura na vida da Igreja (Capítulo VI e último). Essa perspectiva é bastante nova na vida conciliar da Igreja. Mas era uma das condições que o papa João XXIII havia colocado para o Concílio, ser “pastoral”, neste sentido, de alimentar a vida cotidiana dos fiéis. A Igreja venera as Sagradas Escrituras como o faz com o próprio Corpo do Senhor:
“A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor, não deixando jamais, sobretudo na sagrada Liturgia, de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, quer da mesa da palavra de Deus quer da do Corpo de Cristo. Sempre as considerou, e continua a considerar, juntamente com a sagrada Tradição, como regra suprema da sua fé; elas, com efeito, inspiradas como são por Deus, e exaradas por escrito de uma vez para sempre, continuam a dar-nos imutavelmente a palavra do próprio Deus, e fazem ouvir a voz do Espírito Santo através das palavras dos profetas e dos Apóstolos. É preciso, pois, que toda a pregação eclesiástica, assim como a própria religião cristã, seja alimentada e regida pela Sagrada Escritura” (DV 21).
Para que isso aconteça, é preciso que a Igreja cuide para que os fiéis tenham acesso à Escritura (DV 22). Com essa afirmação, o Concílio põe fim às reticencias históricas, ao menos nos últimos séculos, que a Igreja teve em relação ao contato dos fiéis com a Escritura. Embora ainda no Concílio houvesse quem achasse isso perigoso e quisesse que o acesso fosse apenas de uma seleção de textos previamente indicados.
A primeira condição para esse acesso é a confecção de boas traduções em todas as línguas. O Concílio menciona a Septuaginta e a Vulgata (a primeira em grego e a segunda em latim) como modelos, e não mais como aquelas “legítimas”, como era costume até então. As traduções deverão serem feitas a partir dos originais e, se possível, também em comum com os “irmãos separados”, o que efetivamente aconteceu com a TEB, a Tradução Ecumênica da Bíblia.
Incentivou os estudos da Escritura (exegetas, teólogos e todos os ministros da Palavra): “para uma compreensão cada dia mais profunda da Sagrada Escritura” (DV 23). A Escritura que é como a “alma da teologia” (DV 24). Por fim, que todos os fiéis se alimentem da Escritura (acompanhada da oração – DV 25) e ajude a difundi-la de todos os modos (DV 25).
Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo