DEI VERBUM: A TRANSMISSÃO DA REVELAÇÃO DIVINA

10 de Julho de 2025

"DEI VERBUM: A TRANSMISSÃO DA REVELAÇÃO DIVINA"

Uma das propostas para o Ano Jubilar que estamos celebrando é o contato com os grandes documentos do Concílio Vaticano II. Atendendo a este pedido, estamos lendo a Constituição Dogmática Dei Verbum (DV), Sobre a Revelação Divina. Em seu primeiro capítulo, o Concílio tratou da revelação em sua realização mediante a história e a encarnação. Foi objeto de nosso Servindo passado. O segundo capítulo tem como título A transmissão da Revelação divina. Tendo Deus se manifestado de modo especial em um determinado período da história, com seu ápice na encarnação de seu Filho, tudo o que comporta esta salvação chega até nós através da transmissão. É a isto que chamamos Tradição.   

A palavra tradição vem do latim traditio, traditionis, que significa "ação de entregar" ou "ação de transmitir". O verbo latino tradere é composto por trans (que significa "além") e dare (que significa "dar"), ou seja, tradere significa "dar de um lugar para outro" ou "transmitir". Assim, traditio originalmente se referia ao ato de entregar ou transmitir algo de uma geração para outra, seja conhecimento, costumes, valores ou práticas. Com o tempo, o conceito se expandiu para se referir não apenas ao ato de transmitir, mas também ao conteúdo transmitido, ou seja, o conjunto de costumes, crenças, práticas e conhecimentos passados de uma geração para a seguinte dentro de uma sociedade ou grupo. Pela tradição, o passado continua alimentando o presente e futuro. É diferente de tradicionalismo, que pretende uma fixação no passado (para se evitar a confusão entre tradição e tradicionalismo ou a uma tradição qualquer, às vezes se recorre ao uso do T maiúsculo: Tradição). A Tradição tem, em nosso contexto, duas preocupações principais: transmitir integralmente o que foi revelado e permitir que essa revelação seja incorporada de forma existencial pelas gerações que a recebem. A Tradição está, portanto, essencialmente relacionada às Sagradas Escrituras e ao magistério da Igreja.

“Deus dispôs amorosamente que permanecesse íntegro e fosse transmitido a todas as gerações tudo quanto tinha revelado para salvação de todos os povos” (DV 7).

Os apóstolos, que conviveram com Cristo, Mediador e Plenitude da Revelação, receberam esse mandato do Senhor de transmitir o Evangelho da salvação, que é mais amplo que a pregação oral propriamente dita: “Isto foi realizado com fidelidade, tanto pelos Apóstolos que, na sua pregação oral, exemplos e instituições, transmitiram aquilo que tinham recebido dos lábios, trato e obras de Cristo, e o que tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo, como por aqueles Apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação” (DV 7).

Antes de ser posta por escrito, a Boa-Nova da salvação foi vivenciada e anunciada por palavras e ações. Neste sentido, a Tradição precede a própria Escritura. O prólogo do Evangelho de Lucas em que ele narra toda a pesquisa que fez antes de escrever, é um ótimo exemplo. “Porém, para que o Evangelho fosse perenemente conservado íntegro e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram os Bispos como seus sucessores, ‘entregando-lhes o seu próprio ofício de magistério’” (DV 7). Magistério porque é a eles, antes de tudo, que cabe a missão de “ensinar”, de “anunciar” a Palavra. “Portanto, esta sagrada Tradição e a Sagrada Escritura dos dois Testamentos são como um espelho no qual a Igreja peregrina na terra contempla a Deus, de quem tudo recebe, até ser conduzida a vê-lo face a face tal qual Ele é (cf. 1Jo 3,2)” (DV 7).

Tendo introduzido o tema da Tradição, o Concílio vai expor mais detalhadamente sua compreensão. É a primeira vez que o magistério extraordinário propõe um texto tão elaborado sobre a Tradição, detalhando sua natureza (o que é), objeto (a que se refere) e importância:     

“Por isso, a pregação apostólica, que é expressa de modo especial nos livros inspirados, devia conservar-se por uma sucessão contínua até a consumação dos tempos. Por isto os Apóstolos, transmitindo aquilo que eles próprios receberam, exortam os fiéis a manter as tradições que aprenderam seja oralmente, seja por carta (cf. 2 Tess 2,15) e a combater pela fé que se lhes transmitiu uma vez para sempre (cf. Jud 3). O que, porém, foi transmitido pelos Apóstolos compreende todas aquelas coisas que contribuem para santamente conduzir a vida e fazer crescer a fé do Povo de Deus, e assim a Igreja, em sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo o que ela é, tudo o que crê” (DV 8).

No parágrafo anterior, o Concílio havia apresentado a Tradição em seu sentido ativo, de transmissão; agora a propõe em seu sentido passivo, ou seja, do que é transmitido. Este é o objeto da Tradição: “tudo quanto contribui para a vida santa do Povo de Deus e para o aumento da sua fé”, em outras palavras, como viver a comunhão com Deus e com os irmãos (na Igreja) a partir dos ensinamentos de Jesus e da totalidade da Revelação.  

Esta Tradição não é estática, mas dinâmica. Ela é viva na vida da Igreja (Povo de Deus) e na Igreja progride continuamente. Falando mais apropriadamente, não é a Tradição que cresce, mas a percepção sempre mais profunda que adquirimos do que foi transmitido (ações e palavras). O Concílio indica expressamente alguns fatores que contribuem para esse progresso:

“Esta Tradição, oriunda dos Apóstolos, progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo: cresce, com efeito, a compreensão tanto das coisas como das palavras transmitidas, seja pela contemplação e estudo dos que creem, os quais as meditam em seu coração (cf. Lc 2,19 e 51), seja pela íntima compreensão que desfrutam das coisas espirituais, seja pela pregação daqueles que com a sucessão do episcopado receberam o carisma seguro da verdade. A Igreja, pois, no decorrer dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que se cumpram nela as palavras de Deus.” (DV 8).

Nesta vivência ao longo dos séculos em vista da plenitude da Revelação, goza de uma particular autoridade os Santos Padres e a Liturgia da Igreja: “O ensinamento dos Santos Padres testemunha a presença vivificante dessa Tradição, cujas riquezas se transfundem na praxe e na vida da Igreja crente e orante.” (DV 8). A última parte do parágrafo salienta a importância da Tradição, sobretudo em relação à Sagrada Escritura. É pela Tradição que o cânon dos livros inspirados é conhecido e, portanto, ao menos quanto a isso, o conteúdo objetivo da Tradição é mais amplo que a própria Escritura porque a integra; possibilita uma compreensão mais profunda; a mantem sempre atual e atualizada.

Há, portanto, uma estreita relação e interdependência entre Tradição e Escritura. Ambas se originam da mesma fonte divina, compõem um todo e tendem para o mesmo fim:

“A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo; a sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que eles, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação; donde resulta assim que a Igreja não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência” (DV 9).

A Tradição e a Escritura formam o “depósito da Revelação” confiado a Igreja toda, Povo de Deus (batizados: leigos e hierarquia), para que dela viva. Embora a autoridade para interpretar e ensinar a Palavra de Deus compete apenas ao magistério.         Mas o magistério não está acima da Palavra de Deus nem se equipara a ela; está a seu serviço. Por isso, deve ouvir piedosamente, guardar santamente e expor fielmente a Palavra de Deus. Em todo caso, redescobrimos o valor dessa disposição atualmente, quando, com as mídias sociais e a facilidade dos meios de comunicação de massa, muitas pessoas acabam ouvindo mais um “influenciador digital” do que a seu bispo ou Conferência Episcopal.




Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo