Renúncia a Satanás

14 de Junho de 2023

"Renúncia a Satanás"

Como último rito preparatório para o batismo, temos a renúncia a Satanás e adesão a Cristo, feita de forma solene na noite de sábado para domingo de Páscoa. Entre a ação ritual e a simbologia da renúncia, o mais importante é certamente a fórmula. Os estudiosos buscam a mais antiga e seu significado, mas não há muita concordância a esse respeito. Na verdade, havia nos primeiros séculos uma enorme variedade de fórmulas. Elas expressam a diversidade das Igrejas particulares, de sua cultura e língua.  Mais do que buscar a primeira fórmula, nos interessa seu significado. Ao menos até a reforma litúrgica promovida na esteira do Concílio Vaticano II (1962-65), a fórmula mais comum no Ocidente era aquela encontrada na Tradição Apostólica (44,10) de Hipólito, do início do século III e praticada em Roma:

“Eu renuncio a ti Satanás, às tuas pompas e a tuas obras”

Esta é a tradução latina de uma possível fórmula transmitida em grego. Outras traduções possuem pequenas modificações, embora sempre mantendo três termos: Satanás, anjos, obras (tradução etíope); Satanás, culto, obras (tradução copta).

No Oriente, a variação das fórmulas em uso nas Igrejas particulares é ainda maior. Cirilo de Jerusalém (mas pode ser que esta obra seja de seu sucessor, João), do século IV, cita uma fórmula com quatro termos. Nas Catequeses Mistagógicas (I,4-8), após cada um, apresenta um comentário:

“Eu renuncio a ti, satanás. (...) E a todas as tuas obras. (...) E a toda tua pompa. (...) E a teu culto”

Na Igreja da Síria encontramos uma fórmula muito semelhante a essa, com quatro termos, mas ao invés de “pompas”, aparece “anjos”. Não é de se estranhar, já que no judaísmo do primeiro século bem como no cristianismo primitivo acreditava-se que Satanás se utilizasse de intermediários para agir sobre a humanidade, justamente os chamados “anjos de Satanás”. A fórmula a encontramos em Teodoro de Mopsuestia (Les Homélies. XIII. Introduction):

“Eu renuncio a Satanás, a todos os seus anjos, a todas as suas obras, a todo o seu culto”. E complementa: “a toda a sua vaidade e a todo desregramento secular e eu me comprometo por voto a ser batizado em nome do Pai, do Filho e da Espírito Santo”.

Em Milão, uma Igreja com rosto muito peculiar, encontramos nas obras de Santo Ambrósio, seu bispo no século IV, uma fórmula de renúncia com apenas dois termos. É bem verdade que após a renúncia ao diabo e a suas obras, há uma segunda renúncia: “’Renuncias ao mundo e às suas concupiscências?’ O que respondeste? ‘Renuncio’”. A fórmula que consta na obra Sobre os Sacramentos (I, 5) é:

“Renuncias ao diabo e às suas obras?”

Escolhi essas quatro fórmulas porque nelas encontramos os elementos que estão presentes em quase todas. Em comum, o primeiro elemento, ao qual se dirige: Satanás ou Diabo (a diferença está na língua de origem). Os outros elementos são: obras, pompas, anjos e culto. O mais discutido e de uso incerto é “pompas”.

Em seu estudo, o exegeta dominicano francês Marie-Émile Boismard (1916-2004), um dos tradutores da famosa Bíblia de Jerusalém, levanta uma interessante hipótese: os quatro termos surgiram por problemas de tradução e foram sendo incorporados; a palavra básica seria um termo em hebraico, mas com um campo semântico que possibilitou essas traduções; termos que foram sendo incorporados por fórmulas mais tardias. Como conclusão: as fórmulas com quatro termos são as mais tardias e a mais próxima da original deveria conter apenas dois: Satanás e suas obras (que são uma forma de culto; realizado por seus anjos; suas pompas).  A renúncia a Satanás teria sua origem na liturgia batismal, influenciada pela liturgia do batismo judaico dos prosélitos, assim como a liturgia da Páscoa cristã se inspira na Páscoa judaica. A fórmula seria: “Eu renuncio a Satanás e suas obras”. E teria sua inspiração em Ex 5,3-4:

Eles disseram: «O Deus dos hebreus veio ao nosso encontro. Deixe-nos fazer uma viagem de três dias pelo deserto para oferecermos sacrifícios a Javé nosso Deus; caso contrário, ele nos ferirá com peste ou espada».  Então o rei do Egito lhes disse: «Moisés e Aarão, por que vocês subvertem o povo que trabalha[obras]? Voltem já para o trabalho! [obras]»”

No texto, opõem-se Javé e suas obras ou culto ao Faraó e suas obras ou culto. Boismard pensa que por volta dos anos 50 já tenhamos uma liturgia batismal cristã constituída e tendo por referência o Êxodo, da qual podemos encontrar vestígios em 1Pd 1,13 – 2,10. Seja como for, já ao longo do NT encontramos essa exortação a resistir a Satanás e suas obras: Ef 2,2; 6,16; 1Pd 5,8-9; Tg 4,7; 2Tm 4,17-18; a abandonar as obras más ou das trevas: Col 3,8; Ef 4,25; 1Pd 2,1; Rm 13,12. Não há nada de mágico ou de vazio existencial na renúncia a Satanás. Ela implica uma conversão de vida. Ou melhor, ela coroa uma conversão que deve ter se concretizado ao longo da caminhada catecumenal. Podemos perceber o quanto é concreta essa renúncia pelas palavras de Cirilo de Jerusalém:

“A pompa de Satanás é a paixão do teatro, das corridas de cavalo no hipódromo, os jogos de circo e toda vaidade desse gênero. Depois também as coisas que costumeiramente são expostas nas festas dos ídolos, carnes, pães e outras coisas conspurcadas pela invocação dos Satanás impuros. Esses alimentos, que fazem parte da pompa de Satanás, são puros em si mesmos, mas tornados impuros pela invocação dos Satanás” (1072 A)  

Os espetáculos do teatro, hipódromo e do circo fazem parte das “pompas” de Satanás enquanto estavam ligados a atos cultuais aos deuses dos povos politeístas e, portanto, para os cristãos, idolatria. O mesmo pode ser dito dos alimentos que, em si mesmos, são puros. O que os torna impuros é o uso que se faz deles. Com o avanço do cristianismo e o declínio da idolatria, os santos padres irão se concentrar no aspecto imoral do qual frequentemente estão revestidos. Entre as práticas condenadas pelos padres estão também as adivinhações, signos, os amuletos, as práticas mágicas, a astrologia. Uma afirmação de Agostinho talvez seja mais questionadora para nós. Após afirmar que há quem, por inveja, se alegre com o erro de outro, escreve:

“Pois, que há de mais detestável e o que mais acumula a ira no dia da ira e da revelação do justo julgamento de Deus, do que, à semelhança e à imitação do diabo, alegrar-se com o mal dos outros? (...) o Senhor conhece os que lhe pertencem, e todo aquele que pronuncia o nome do Senhor se afaste do mal” (Primeira Catequese aos Não Cristãos XI, 16).

O RICA apresenta várias possibilidades para o Rito de Renúncia, como o n.259: “Para viver na liberdade dos filhos de Deus, renuncias ao pecado?”; “Para viver como irmãos, renuncias a tudo o que causa desunião?”; “Para seguir Jesus Cristo, renuncias ao demônio, autor e princípio do pecado?”. Ou, simplesmente: “Vocês renunciam ao demônio e a todas as suas obras e seduções?”. É importante que este rito não seja esvaziado por uma referência abstrata ao princípio do mal, mas que ao professá-lo, o batizando perceba suas implicações em sua vida cotidiana.


Artigo de Padre Belini, colunista do Jornal Servindo